segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Um dia de uma professora portuguesa


Hoje fui para a escola ainda com mais custo que o habitual. É dia de 9ºC e toda a turma parece apostada em dar cabo do que resta da minha saúde. Se não tivesse filhos para criar já me tinha suicidado. Com um pouco de sorte pode ser que os piores não vão hoje. Estou a tremer. Tomei mais um Victan.
...As aulas com o 8ºA e o 9ºB não foram das piores, porque já estamos na Páscoa e metade deles faltaram. Só apanhei com uns paus de giz, um ou outro avião de papel e uma sapatilha All Stars preta. Não consegui dar matéria, como é habitual. Uns falam ao telemóvel, outros jogam nas Playstation Portable, outros lêem revistas de wrestling e de tuning. Dantes podíamos chamar alguém do Conselho Directivo, mas agora ralham connosco e acusam-nos de não sabermos dar aulas.
...O 7ºD foi pior. São mais novos e ainda não se entretêm muito com os jogos e as revistas. Estes estão naquela fase em que gostam de andar a passear por cima das mesas, a saltar pelas janelas e a entrar outra vez pela porta da sala, esse tipo de coisas... Andar por cima das mesas ainda é como o outro... Como me rio agora quando me lembro da primeira vez que um aluno andou por cima das mesas. Foi na altura do Governo do Guterres. Mandei um recado para casa e apresentei queixa à Directora de Turma. Tive sorte! Os pais da aluna fizeram queixa, mas dessa vez só apanhei um processo disciplinar do Ministério, por não saber manter a ordem na sala. Não me bateram nem nada!!!
...O Presidente do Executivo ia a passar e viu alunos a saltar pela janela. Estou em sarilhos. Vou ter avaliação negativa por não saber manter a ordem. Deu-me também uma descompostura por eu ter mandado um aluno para a rua com falta disciplinar. Disse-me que o bom professor é persuasivo e não usa medidas de coacção bárbaras. Tomei mais um Victan.
...Neste intervalo apareceu o pai de uma aluna que queria falar comigo. Deu-me dois estalos por eu a ter repreendido, por ela estar a atirar cadeiras pela janela e por ter acendido uma fogueira na sala de aula. Ainda tentei dizer que ela trouxe garrafas de vodka na mochila e deu a beber aos colegas todos, mas ele disse-me que o vodka está pago e não é da minha conta. Só deitei um bocadinho de sangue pelo nariz. Tomei mais um Victan.
...A aula do 7ºB foi ainda pior. É de tarde e eles já estão a ressacar. Ai como era bom, dantes, quando se mandavam 28 recados para casa por aula, tantos quantos os alunos, e se preenchiam 28 participações... Não se dava aula, mas ainda não levávamos na tromba nem tínhamos avaliações negativas por não sabermos manter a ordem... Os alunos estavam muito agitados, mesmo para os padrões deles. Tanto que eu queria ter explicado o que são rochas magmáticas... Há anos que não explico matéria nenhuma. Passo as aulas a tentar que não me batam e escrevo umas coisas no quadro. Eles andavam ao estalo uns aos outros, a fazerem corridas e a ensaiarem coreografias dos Morangos com Açúcar. A maior parte ainda nem sabe ler bem, mas se eu der muitas negativas tenho mais um processo disciplinar e corro o risco de ir para a rua, e com esta idade já não me aceitam como empregada do McDonalds. Talvez como mulher de limpeza, mas tenho duas hérnias discais e alguns parafusos nos ossos das pernas, por causa das sovas que tenho apanhado. Tomei mais um Victan.
...Estou no limite das minhas forças. 50 Horas por semana na escola, mais os serões e fins de semana agarrada a grelhas, avaliações, planos individuais, actas, processos disciplinares, participações, contactos com os Encarregados de Educação, registos de faltas, relatórios de apoio pedagógico acrescido, planos de acompanhamento, acções de formação, feitura de horários e turmas, currículos alternativos, estabelecimento de critérios e objectivos colectivos e individuais, mais a organização da defesa dos processos disciplinares que me põem por não saber manter a disciplina, têm dado cabo de mim. Sem contar com as idas ao hospital e as estadas nas clínicas psiquiátricas e na ginástica de reabilitação.
...No intervalo estive coma Coordenadora a receber instruções para retirar os telemóveis aos alunos que insistissem usá-los nas aulas. Tomei mais um Victan...
...Entrei na aula do 9ºC e reparei que eles vinham ainda mais bêbados e pedrados que o habitual. A Sónia Pinto pôs-se a abanar o telemóvel em frente à minha cara e avisei-a repetidamente que não o podia usar. Pôs-se a telefonar e a mandar mensagens, enquanto ria e debitava obscenidades para um tal Pata de Urso. Avisei-a mais uma vez, enquanto o resto da turma ria e gerava o caos total. Ela pôs-se a refilar, como é seu hábito e a dizer que não era só ela, que a Vanessa Gomes também estava a fazer o mesmo. Eu não vi, pois a Vanessa costuma passar boa parte das aulas por baixo das mesas dos rapazes... Com receio de levar mais um processo, retirei-lhe o telemóvel. Ela até nem gritou nem me bateu muito. Consegui sobreviver ao resto da aula, e até expliquei umas coisas no quadro acerca da fotossíntese! O Alexandre Andrade estava com os fones postos e o chapéu de basebol para os olhos, brincava com a ponta e mola, olhava para as moléculas do ATP e dizia que eram iguais aos bichinhos que ele tem no cérebro. E ria-se.Tomei mais um Victan.
...Hoje à noite tenho que procurar forças para tomar um banho e lavar a cabeça. Estou esgotada. Vem aí a semana das reuniões de avaliação. Temos todos que fingir que os alunos se comportam bem e que aprendem alguma coisa, ou a perseguição do Ministério intensifica-se.
...Os alunos disseram-me que filmaram a cena do telemóvel com a Sónia. Estou perdida! É o fim da minha carreira! Os pais vão-me crucificar! O Conselho Executivo também! O Ministério também! Estou em pânico. Não sei se apresente participação ou não. Há anos que não as apresento, porque para redigir todas precisava de umas 8 horas por dia pelo menos, e ainda era acusada de não saber manter a ordem. Não sei o que faça. Os Victans já não fazem efeito. Os meus filhos! Os meus filhos! O que será deles?

(Desconheço o Autor!)

Um comentário:

Rafoga disse...

Sou professor em uma escola em Sao Paulo. Com a diferença de eu ser novo, muito me identifiquei com o relato da professora portuguesa: dificuldade de se estabelecer um ambiente de aprendizado, sofrer com o comportamento descontrolado, a relação mal resolvida entre aula e celulares, a culpabilização do professor por tudo o que ocorre em sala de aula, a manutenção de aparências em documentos oficiais, a burocracia. Poderia ser eu escrevendo o mesmo texto, sendo de uma cidade bem distante da dela.